Em meio a uma noite tisna e tempestuosa, um jovem loiro de olhos azuis chamado Fritz rasteja furtivamente favorecido pelas misteriosas sombras da noite pelo quintal de uma velha casa, de um velho amigo, o também loiro de olhos azuis, Chuckrutz.
_ Chuckrutz! Chuckrutz! Cadê você, seu leite azedo! – Fritz praguejava enquanto batia no vidro da janela.
_ Porra! Vai dar susto na sua mãe, desgraçado! – Xinga Chuckrutz, enquanto recuperava o coração que havia pulado pela boca.
_ Esqueceu do que combinamos hoje de tarde?
_ Esqueci do quê? – Chuckrutz responde perguntando.
_ Se você não se lembra do que é então você esqueceu, porra! – Fritz começava a ficar nervoso.
_ Eu não me esqueci de nada. – Chuckrutz diz resoluto.
_ Como você sabe? – Fritz pergunta com ar de desafio.
_ Por que eu me lembro – Chuckrutz responde serenamente.
_ Então lembra do quê então, ô animal?
_ Lembro de que não me esqueci de nada. – Chuckrutz se sentia mais inteligente do que de costume.
_ Então o que foi que a gente combinou hoje de tarde? – Pergunta Fritz em voz angustiada.
_ Não lembro. – Reponde Chuckrutz com ar resignado.
_ Então como você tem a cara-de-pau de falar que não se esqueceu de nada?? – Fritz entra em desespero.
_ Tá bom. Eu me esqueci.
_ Lembrou agora? – Pergunta Fritz com os olhos brilhando.
_ Sim! – Chuckrutz responde com decisão.
_ Então o que era? – Fritz babava de ódio.
_ Lembrei que esqueci de alguma coisa. – Chuckrutz diz como se tivesse acabado de defender, com extremo sucesso, uma tese de doutorado em física nuclear.
Fritz se vira em direção ao quintal e começa a ir embora chorando.
_ Ô Fritz! A gente não ia tacar fogo em mendigos hoje de noite? – Chuckrutz grita da janela fazendo Fritz parar imediatamente.
_ Pssssssssssssssssss! Fala baixo, infeliz! Filho de uma vaca holandesa! Quer que os vizinhos ouçam?
_ Foi mal.
_ Então você se lembrou! – Fritz estava feliz
_ Lembrei de quê? – Chuckrutz faz cara de quem não tinha idéia do que Fritz estava falando.
_ Do que a gente tinha combinado de tarde. – Fritz começa a ficar preocupado.
_ Mas a gente não tinha combinado uma coisa que eu tinha me esquecido?
_ Sim. E era isso mesmo. Atear fogo em mendigo! – Fritz entra de novo em desespero
_ Mas isso eu nunca esqueci – Chuckrutz responde como se fosse algo óbvio.
_ Então porque você achou que era outra coisa? – Fritz já estava arrancando os cabelos.
_ Não sei. Não me lembro que outra coisa era essa!
Minutos depois, após alguns insultos e maldições mútuas, os dois jovens arianos, filhos de boas famílias brasileiras, caminhavam pelas ruas desertas a procura de mendigos adormecidos.
_ Por que agente vai queimar mendigos, Fritz?
_ Porque somos brancos e eles são negros. – Fritz responde como se Chuckrutz tivesse acabado de lhe perguntar as horas.
_ Mas isso não é crime? – Chuckrutz pergunta argutamente.
_ Sim.
_ Não tem medo de ir preso? – Chuckrutz se mostra espantado.
_ Não.
_ Por quê? – Chuckrutz cada vez mais curioso com a próxima resposta.
_ Porque somos brancos e eles são negros. – Fritz encerra o assunto de uma vez por todas enquanto todos os ministros do STF aplaudem o jovem jurista de pé.
Enquanto andavam pelas ruas, Fritz interrompe seu silêncio e aponta efusivamente!
_ Olha lá! Debaixo daquele viaduto! Tem um mendigo lá!
_ Beleza! Cadê a álcool e os fósforos? – Chuckrutz pergunta excitado.
_ Aqui na mochila. Vamos antes que ele acorde!
Ao chegar aos pés do desavisado mendigo adormecido, Chuckrutz interrompe o colega.
_ Esse não.
_ Por que não? – Pergunta Fritz com espanto.
_ Tem um cachorro dormindo com o mendigo. Olha ali dentro da camisa dele.
_ Verdade. Eu não queimo cachorros.
_ Nem eu. Vamos procurar outro mendigo.
Poucas esquinas a frente, encontram outro mendigo dormindo sob uma marquise.
_ Esse é meu! – Diz Chuckrutz
_ É nosso!
_ Esse não. – Diz novamente Chuckrutz.
_ Diabos. O que foi dessa vez? – Fritz fica impaciente.
_ Veja. Ele não é mendigo. É só um bêbado que saiu pra beber e não conseguiu voltar pra casa. – Explica Chuckrutz.
_ Como você sabe?
_ É o meu pai.
_ Ok. Vamos procurar outro vagabundo, mas que seja um mendigo de verdade.
Seguindo por algumas ruas, encontram um homem dormindo num ponto de ônibus.
_ Esse vai virar churrasco! – Fritz esfrega as mãos com ar diabólico.
_ Esse não.
_ Puta que pariu! Por que não?
_ Veja. Ele é um índio. – Chuckrutz aponta para o pobre ianomâmi.
_ Bosta! Mendigo, pode. Índio, não.
Quando os jovens arianos estavam quase desistindo de transformar um morador de rua em tocha ambulante e barulhenta, eles dobram uma esquina e encontram um verdadeiro exército de mendigos rastejando pelo chão, se escorando em muros, carros e uns aos outros como se estivessem todos bêbados.
_ Caralho! Que lugar é esse?
_ É a Cracolândia! – Responde Fritz com total certeza.
_ Nunca vi tanto mendigo assim na minha vida – Diz Chuckrutz como se estivesse na Disney.
_ E tem umas putas no meio deles também. – Fritz aponta para algumas mulheres próximas a um poste.
_ Puta pode queimar, né? – Pergunta Chuckrutz sem ter idéia da reposta.
_ Pode, menos a sua mãe.
_ Ok.
Mas quando os dois jovens se encaminhavam para começar a jogar álcool sobre os mendigos que mal podiam se manter em pé, Chuckrutz dá um grito de desesperado!
_ Esses não!
_ Por que não, meu deus?? – Fritz grita em tom de súplicas!
_ Eles não são mendigos! Olha! São zumbis!
_ HAAAAA! O Apocalipse Zumbi começou! Eu sabia que iria começar aqui! – Fritz grita triunfante e assustado ao mesmo tempo!
_ HAAAAA! Finalmente! Oba! Ops! E agora, o que a gente vai fazer?
_ Corre! Corre! Eles ainda não viram a gente!
_ Corre pra onde? – Pergunta Chuckrutz com vontade de olhar pra trás.
_ Vamos para o rio porque zumbi não sabe nadar!
Os dois jovens amigos caucasianos correm desesperados até chegar à margem de um rio e pulam em suas águas negras e frias. Em segundos os dois saem das águas na mesma velocidade com que pularam nela.
_ Tietê é sacanagem. Vamos encarar os zumbis.
Márcio Delgado
Conto escrito em 2012. O primeiro inédito em 11 anos na Necrose.
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