domingo, 29 de janeiro de 2012

Contos de Ficção Científica - Vodka


Ivan Seialovich estava terminando a sua segunda garrafa de Kusnetsoskaya e não dava impressão que iria parar.
_ Ivan! Como um engenheiro sério com você pôde esconder todas essas garrafas aqui?
_ Não me pergunte capitão! Mas se eu fosse o senhor, não acenderia um cigarro aqui dentro... As paredes podem explodir.
_ Muito engraçado... Droga! Essa porcaria de câmara de vácuo tinha que perder a vedação? Agora temos que esperar o teflon aderir primeiro antes de prosseguirmos com as experiências  – Disse o capitão Viktor Yasimov com ar de desolação.
_ Convenhamos, senhor! Essa lata velha já serviu tempo demais. Temos que agradecer que os "garis espaciais" ainda não nos tenham levado! Não temos nada pra fazer até amanhã, quando o teflon já estiver totalmente seco. Tome! Dê um gole.
_ Você sabe é contra o regulamento... Mas ao diabo com isso! Se nós ainda tivéssemos um Zampolit dedo-duro do partido aqui conosco como nos velhos tempos, eu não permitiria bebia aqui, mas em virtude das circunstâncias... Me dê já essa garrafa!

Os dois únicos tripulantes da Estação Orbital Russa MIR estavam há 8 meses no espaço e estavam ansiosos para serem levados de volta a Terra. Mas como o governo russo ainda não aprovara o orçamento para o aluguel de um ônibus espacial norte-americano para fazer a “troca de turno" com outros astronautas, eles teriam que esperar pelo menos mais alguns meses.

Os astronautas sabiam que a velha Rodina não existia mais. Os profundos problemas econômicos e sociais atuais na Rússia fez com que a verba do programa espacial fosse reduzida drasticamente. Antes da queda da URSS em 1991, quase todos os astronautas soviéticos eram membros do partido comunista e faziam parte da chamada Nomenklatura, o que significava que além de altos salários, tinham certos tipos de privilégios que a grande maioria da população nem sequer podia imaginar. Entretanto, hoje o projeto espacial era encarado como um gasto sem sentido e os antigos ilustres astronautas eram tratados como se fossem simples trabalhadores de um Kombinat industrial siberiano. Mas apesar de tudo, homens como o capitão Viktor não se arrependem de terem rasgado o carteira do partido depois que o Duma russo sofrera um golpe frustrado comunista no outubro de 1993.

Ivan, que já havia mergulhado numa viagem etílica, flutuava imóvel na ponte de controle sugado pelo pequeno circulador de ar no teto. Viktor, preso na cadeira com o cinto, ainda não terminara a primeira dose com o pequeno canudo que dispunha, mas já estava soltando suspiros etílicos vindos da região do abdômen. De repente, algo parecido com um sussurrar chegava ao seu ouvido. Viktor olhou para o flutuante amigo inerte ao lado dele e concluiu que não viera dele.
_ Nem terminei a primeira garrafa e já estou ouvindo coisas?
O sussurro se transformou numa voz nítida. Uma voz feminina. Parecia que a voz estava chamando por ele.
_ Viktor.
_ É... Essa é da boa mesmo! Disse olhando para a garrafa.
_ Viktor! Você está nos ouvindo? É muito importante que você nos ouça.
A voz não vinha de lugar algum na cabina. Ela vinha de dentro da cabeça. Pensou um pouco e chegou a conclusão de que isso seria fruto da bebida e resolveu relaxar.
_ Viktor! Nós somos reais! Não somos frutos do álcool em sua mente. Dê uma olhada pela escotilha e nos verá.

Viktor, decidido a participar da sua própria ilusão, esticou o pescoço para a escotilha na esperança de ver alguma espécie de "sereia espacial" no lado de fora da MIR. Mas ele viu outra coisa...

A imagem, apesar de surpreendente, não era estranha, pois Viktor sempre fora um apaixonado por cinema e aquele grande disco voador que via pela escotilha não era novidade.
_ Tudo bem! Estou vendo um disco voador pela escotilha! Camarada! Essa vodka é da boa mesmo! Disse tomando mais um gole.
_ Por favor, Viktor! Não beba mais! Se você desmaiar como o seu amigo humano, não poderemos lhe mandar mais nenhuma mensagem! A voz parecia bastante angustiada.
_ O que pode ser mais importante do que uma garrafa de Kusnetsoskaya? Disse o astronauta com um escárnio nítido no rosto.
_Você não entende! Viajamos milhões de anos luz para entrar em contato com vocês. Nós temos um convite que mudará o destino da humanidade no universo. Temos observado os seus avanços tecnológicos e apesar de estarem ainda bem atrasados em relação a maioria das raças, achamos que vocês devem participar da  nossa Comunidade Intergaláctica de Planetas. Assim haverá um intercâmbio entre as raças de todo Universo e haverá paz e prosperidade para todos!
_ Hum... Já vejo até a manchete do Pravda: "Astronauta russo é o primeiro humano a fazer contato com ETs". Você acha que vou cair na minha própria alucinação? Muita gentileza de vocês se preocuparem conosco! Spaciba! Agora vão embora!
_ O quê? Você está recusando, em nome da humanidade, o convite para participar da Liga das Raças Inteligentes do Universo? Você pode imaginar que tipo de benefícios está jogando fora? Nós temos como acabar com todas as doenças, com a fome, todos os problemas que a sua raça ainda enfrenta!
Viktor começou a rir em escala universal. Mal conseguia respirar.
_ Raça inteligente? Nós, Humanos? Acho que vocês é que precisam de ajuda! Eu estava começando a acreditar em você, "voz". Mas depois dessa... Voltem daqui um milhão de anos. Quem sabe até lá nós já não estaremos civilizados o bastante? Agora com licença que vou terminar o que estava fazendo.
Viktor deu uma tremenda sugada com o canudo que sorveu todo o resto de vodka que havia na garrafa. Segundos depois, tudo a sua volta rodava com uma velocidade orbital e a escuridão tomou conta de tudo.
_ Pronto! Desmaiou também!
_ Eu disse a você, Zwirth, que esses humanos estúpidos ainda não estavam preparados para participar da comunidade.
_ Não entendo... Será que todos os humanos são tão céticos como ele?
_ Não sei e não me interessa! Vamos embora daqui. Essa periferia da espiral da Galáxia me dá alergia.
_ Você tem razão Xserth... Vamos fazer como o Viktor mesmo nos disse. Quem sabe daqui a um milhão de anos eles estarão prontos? Afinal não é tanto tempo assim.
_ Duvido muito que os humanos aguentem mais um milênio...



Márcio Delgado
Conto originalmente escrito em 1999.

Interessante como algumas coisas relativas ao transporte espacial (ônibus espaciais norte-americanos x foguetes russos) mudaram nesses últimos 10 anos. Esse também é um dos contos mais plagiados de todos que faziam parte da velha Necrose. Até hoje ele aparece em alguns blogs de picaretas como sendo "deles".

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