Manolo era um italiano completamente cético. Para ele todas as religiões não passavam de crendice e não fazia a menor questão de esconder seu desprezo pelas pessoas que acreditavam em coisas esotéricas e espirituais. Como todo bom italiano, Manolo era falante e fanfarrão. Defendia fervorosamente que era o detentor da verdade absoluta e que qualquer opinião que não fosse a dele deveria ser ignorada imediatamente (qualquer semelhança com o autor é mera coincidência).
Certa noite, no Bar do Seu Zequinha, Manolo e seus amigos entraram numa discussão séria. Seria assunto para a noite inteira se Marilone, um dos amigos, para dar fim àquela "briga", não o desafiasse em uma aposta:
_ Manolo! Se o TUPI não subir para a segunda divisão, você vai até o Terreiro do Pai Tumé comigo assistir a uma sessão de Umbanda! Disse Marilone peremptoriamente.
_ Rá! Cale-se patife! É evidente que o TUPI subirá! Cretino! Você comerá tudo o que disse com as moelas de frango asquerosas que são servidas nesse Bar infecto. Aceito o desafio!
As outras pessoas que estavam na mesa, olharam assustadas para o italiano, que já estava roxo de cólera.
Dito e feito! o TUPI perdeu dois jogos em casa e um fora, ficando em último lugar no "quadrangular decisivo". Manolo perdera a aposta.
_ Sim! Sou um homem de palavra. Irei com você. Falou o aborrecido italiano.
_ Mas você tem que me prometer que não ficará rindo ou atrapalhar a sessão. O Pai Tumé não gosta de falta de respeito dentro do seu Terreiro. Disse Marilone.
_ Ah! Fala sério! Eu não prometo nada. Estou pouco me lixando se o tal macumbeiro gosta ou não de brincadeira! Pra mim esse negócio de pajelança é tudo uma grande palhaçada!
_ Pajelança, não! Umbanda!
_ Bah! É tudo a mesma coisa. Macumba, Pajelança, Vodu, Candomblé, Umbanda, Quimbanda, Quitanda... Os dois foram discutindo felizes até o tal Terreiro de Pai Tumé.
Como o leitor deve saber, existe um sincretismo religioso muito grande entre as religiões afro-brasileiras. Práticas da Uganda, Candomblé e Quimbanda, se misturam com o catolicismo e Espiritismo aparentemente sem nenhum critério, variando apenas de região para região. Portanto, não existe um dogma fixo para a realização das giras, podendo apresentar grandes diferenças de um Terreiro para outro.
Ao chegarem, os dois notaram uma aglomeração de pessoas próximas ao Terreiro. A “gira” estava para começar.
_ As giras ou sessões de Umbanda são realizadas uma vez por semana, cultua-se espíritos de uma determinada falange havendo portanto quatro sessões mensais. Falou Marilone ao incrédulo amigo.
_ Como é que é? Perguntou Manolo com um interesse que surpreendeu até ele mesmo.
_ Bem, é melhor você ver com os próprios olhos...
Nesse momento, a cerimônia teve o seu início. A sessão começou com a defumação do Templo; médiuns se colocaram defronte ao altar principal. De um lado os homens, do outro as mulheres. Abaixo das imagens, entre as quais a de Cristo, a da Virgem Maria e a de São Jorge (isso surpreendeu Manolo), se postaram ao Babalorixá (Pai-de-Santo): o "Pai Tumé", e a Ialorixá (Mãe-de-Santo): Dona Dodora. Efetuado o sermão introdutório, começou a cerimônia denominada “bater cabeças”. Sempre cantando pontos (cantigas) em louvor aos orixás, os médiuns "tacavam" a cabeça nos pés do Pai Tumé e da Mãe-de-Santo; estes, por seu turno, "tacavam" com a cabeça nos pés das imagens. Manolo quase teve um acesso de riso, mas foi reprimido por Marilone.
_ Fica quieto! Senão pode baixar um orixá em você! Falou Marilone.
_ Duvido! Disse Manolo que estava achando aquilo uma grande besteira.
A seguir, ao som dos atabaques, os médiuns começaram a montar nos Cavalos-de-Santo (os fiéis que receberiam os orixás ficavam de quatro). Manolo não concordou com que "montassem" nele, pois ele era apenas um visitante e não queria “bolar para o santo”. Os médiuns traziam vestes muito brancas e guias ou colares característicos de seus orixás: em caso de baixar um caboclo (espírito de índio), o médium trará um cocar de penas e um charuto nos lábios; se descer um preto velho (espírito de escravo), o fiel usará chapéu de palha, cachimbo e bengala; se a entidade for Exú ou sua forma feminina, Pomba-Gira, teremos cigarro ou charuto, capa preta e vermelha e uma garrafa de aguardente.
_ O que acontece quando uma dessas entidades baixam? Manolo perguntou ao amigo.
_ Psiu! Fala baixo! Começam, a seguir, as consultas às entidades. Versam sobre saúde, dinheiro, trabalho, amor, essas coisas. A informação desejada é sempre complementada com a recomendação do uso de um banho de ervas, e da colocação de copos com água em vários lugares da casa do consulente, com o fito de ser afastado as mandingas ou mau olhado. Respondeu Marilone.
_ E essa história de Encruzilhada? Para que serve?
_ Hiiii.... Não confunda as coisas! O Despacho de Exú na Encruzilhada se chama padê. Isso é coisa de Candomblé. Lá se oferece ao “homem das encruzilhadas” na segunda-feira uma galinha preta aberta no meio, transformada em "cabaça sacramental", cheia de ingredientes diversos que atuam como oferenda. Pode-se oferecer também uma grande sexta com um bode ou animais diversos, bonecas de pano chamadas de vulto crivada de alfinetes (não é Vodu Haitiano), farofa de azeite-de-dendê, garrafa de cachaça, charutos, velas vermelhas acesa, tiras de pano vermelho e moedas. Só se pode fazer em encruzilhadas macho (em forma de cruz) ou encruzilhadas fêmeas (em forma de T), com exceção das linhas de bonde ou trem, pois o ferro neutraliza o ato mágico!
_ Porra! Essa eu nem podia imaginar; Quanta besteira! Disse espantado Manolo.
Enquanto os atabaques faziam a festa, algo completamente inesperado aconteceu. Manolo começou a tremer, a balançar o corpo e a se contorcer pelo chão.
_ Nossa Senhora! O abiã está bolando para o santo disse um dos médiuns ao ver o novato rolando no chão.
_ Manolo!! Você está recebendo santo?? Perguntou Marilone com os olhos arregalados.
_ É Burro!!! É Burro!!! Gritou a congregação. “Burro” é o nome dado ao possuído quando incorporado por Exú.
_ Pior! É POMBA-GIRA! Gritou Marilone.
Normalmente é de vontade dos dirigentes da Umbanda que Exú seja suprimido das giras pois se trata de uma entidade muito travessa, que toma conta da cerimônia e fecha o altar dos orixás brancos. Quando uma Pomba-Gira aparece, a cerimônia vira um verdadeiro pandemônio. Mas espanto maior tomou conta do Terreiro pois Pomba-gira só baixa em mulher ou em... gay.
Manolo gritava e dançava quando começou a tirar a roupa com o ritmo dos atabaques. O Pai Tumé se levantou e se aproximou da Pomba-Gira.
_ Ô comadre. O quê que vosmicê quer pra voltar? Perguntou o Pai Tumé procurando tirar o "doutor" do corpo do abiã.
_ Sai fora meu chapa! Eu não quero voltar! Gritou aquele que a pouco era Manolo, amigo de Marilone.
_ Oxalá você se canse e vá embora! Gritou o Pai Tumé.
_ Eu quero um crioulo bem gostoso! Um crioulo bem forte e sacudo! Eu quero também um bode preto e uma garrafa de pinga! Gritou a Pomba-Gira.
A congregação ficou desesperada pois já esperavam por isso. Marilone ficou preocupado com Manolo, pois teve medo que o Pai Tumé quisesse que Manolo virasse para o santo, ou seja, ficar preso na criadeira com os cabelos completamente raspados.
_ Pega o bode e a pinga! Isso só pode ser mandinga de Macumbeiro! Gritou o Pai Tumé para um dos pequenos cambonos (filhos-de-santo) enquanto pegava alguns ramos de arruda no altar principal.
_ Seu velho preto duma figa! Eu só volto quando quero! Sou Pomba-Gira Maria Padilha!
_ Cala boca seu caboclo velho! Gritou a mãe-de-santo!
Enquanto os fiéis faziam uma roda em torno da Pomba-Gira que não parava de dançar, os atabaques entravam em ritmo alucinante. O Pai Tumé temia perder o controle pois parte dos médiuns já acompanhavam a dança da entidade. Uma arruaça tomou conta do Terreiro. Os pontos cantados, as batucadas e a dança envolviam o recinto como uma onda de misticismo característicos das sessões dos orixás. O Pai Tumé sinalizou para Marilone que corresse em direção à porta lateral do Terreiro e pegasse o copo de "água benta das almas" para jogar em Manolo, ou melhor, na Pomba-Gira. No momento em que a congregação inteira dançava em torno do Exu feminino, dois filhos-de-santo seguraram a Pomba-Gira enquanto o Pai Tumé começou a lavar o possuído com as ervas, Marilone então o molhou com a água. A Pomba-Gira parou e caiu no chão quando viu o bode e a cachaça na mão do menino que entrara correndo no Terreiro. Um silêncio sepulcral reinou, os atabaques se calaram e a congregação ficou imóvel. Manolo começou a se levantar tonto e sem entender o que havia acontecido.
_ Quê porra é essa?! O que esses mal acabados fizeram comigo?! Perguntou ao amigo quando viu que estava exausto, molhado e cheio de ramos de arruda no corpo.
_ Você foi tomado por uma Pomba-Gira! Ela baixou em você! Gritou Marilone.
Manolo nem teve tempo de absorver o que ouvira, pois uma sirene e luzes vermelhas anunciavam que a Polícia estava chegando. Foi uma correria para todos os lados, todos que estavam no Terreiro saíram pelo quintal pulando os muros e se embrenhando no matagal. Marilone, que já estava acostumado de correr da Polícia, pegou Manolo pelo braço e o arrastou pelo matagal. A Polícia assim que entrou no Terreiro encontraram apenas um bode preto comendo ervas de arruda. Com certeza, algum vizinho sem respeito pela religião alheia confundira uma cerimônia religiosa com uma briga... Santa ignorância...
Lorde Cigano
Conto originalmente escrito em 1995 e revisto em 2011.
Nenhum comentário:
Postar um comentário