Monitoramento da Via de Acesso, fluxo normal. Números de cidadãos por minuto dentro da média, sem alterações de posições. Situação: azul.
Era uma cena comum. Lá estavam eles, seguindo pelas Vias de Acesso como em todas as manhãs, todos no mesmo sentido, no mesmo ritmo, sem pressa, para o mesmo destino. As Vias de Acesso da cidade eram tomadas por milhares de pessoas, todas indo para as suas "salas de ofício", todas. O cidadão MAX-1601 era um deles, seguia seu caminho como sempre, como um mudo e surdo. As Vias de Acesso eram como linhas coloridas, centenas de pessoas usavam roupas com suas cores específicas, elas representavam seu setor de trabalho: amarela, branca, vermelha, azul, preta... MAX usava seu traje marrom.
Monitoramento do Setor de Contabilidade, 8 horas. Todos os cidadãos em seus postos. Tudo dentro do previsto. Situação: azul.
MAX trabalhava no Setor de Contabilidade com outras 400 pessoas. Seu trabalho era simples: receber os balanços diários do setor de alimentos, conferir se estão dentro do previsto e confirmar, ou não, relatando qualquer diferença no padrão ou número. Em 18 anos nunca fora preciso. MAX teria mais um dia de trabalho pela frente, seria mais um como os outros.
Mas MAX estava se sentindo diferente, franziu as sobrancelhas, remexeu na cadeira várias vezes, olhou para os lados, mordeu as unhas das mãos, batia com o lápis na sua mesa, estava transpirando... Ele tentou se concentrar no trabalho. Não conseguia. Pela primeira vez se sentira incomodado naquela função. Olhava para o relógio na parede constantemente, vendo as horas passarem. Nunca tinha olhado para o relógio antes. Ninguém olhava. Todos sempre estavam no horário, MAX se perguntava porque existia um relógio que nunca era consultado.
O cidadão MAX-1601 encarou o ecrã número 3b por 8.12 segundos. Rendimento abaixo do normal, número de confirmações abaixo do previsto. Recomenda-se observação e levantamento psicológico. Situação: amarelo.
O final do dia era o oposto da manhã, pelo menos no sentido do fluxo de cidadãos.
O cidadão MAX-1601 apresenta sinais cardíacos 45% acima da média. Transpiração anormal. Velocidade de deslocamento 39% acima do normal. Um choque físico, não intencional, com o cidadão THX-1138. O fluxo de individúos sofreu uma alteração percentual desprezível, recomenda-se observação. Situação: laranja.
A volta para a casa seria mais angustiante. MAX tremia, estava praticamente correndo para casa, sabia que seria notado por ELES. ELES sabiam de tudo, de todos. Eram encarregados de proteger, manter, cuidar, vigiar... ELES estavam em todo lugar. Diminuiu o passo, estava tentando se controlar, fechou os punhos e mordeu os lábios e tentou seguir no mesmo ritmo dos outros. "Será que ELES" me viram? Espero que amanhã eu já esteja melhor..." Tentou não pensar nisso ("não pensar" era algo que todos sabiam fazer).
Na manhã seguinte, lá estava ele, com os seus companheiros de caminhada. MAX estava nervoso, estava uns 43 metros atrás de onde se encontrava sempre naquela hora e não conseguira encontrar o seu cartão de identificação. "Espero que não aja inspeção hoje", pensou. Ele tentaria compensar esse atraso sem ser notado. Mas foi impedido...
MAX nunca olhara e nem falara com ninguém na Via de Acesso. Não era permitido. Nada era permitido além de andar no mesmo ritmo senão poderia atrapalhar o fluxo. Somente ELES podiam eventualmente quebrar essa regra. Quando estava começando a aumentar sua velocidade, sentiu uma mão em seu ombro direito. MAX sentiu seu coração pular, ficou imóvel como uma pedra, não teve coragem de girar o rosto e ver dois homens de preto. Apenas aguardou a pergunta: _ Por favor, cidadão. Acompanhe-nos".
MAX virou o corpo e viu dois homens bem mais altos que ele. Usavam óculos escuros (para combinar com o terno?), um deles estava mais atrás, o outro (um pouco mais baixo) sustentava um semi-sorriso num rosto sem emoção. "Por aqui". E pela primeira vez em sua vida, ele guia pelo sentido contrário do fluxo. Os cidadãos que seguiam seu caminho normalmente, somente abriam o caminho para os três homens que seguiam contra maré.
Fluxo afetado em 2%, dentro do previsto. O cidadão MAX-1601 se encontra sob guarda. Seu batimento cardíaco é 90% acima do normal. Equipe de limpeza na Sessão de Contabilidade já retirou os pertences do cidadão MAX-1601. Custo da missão dentro do previsto. Recomenda-se observação intensiva e acompanhamento. Situação: laranja.
Sua mente parecia uma bomba prestes a explodir. Nunca ficara daquele cheio. Relembrara toda a sua vida enquanto era guiado pelos dois homens de preto (não havia muito para relembrar). Estavam indo em direção a um edifício cinza retangular, igual a todos os outros. Tentava saber o que havia acontecido com ele, nunca falhara em seu ofício antes, nunca ficara com pressa de chegar em casa, nunca trombara em alguém antes, nunca ficara parado olhando para o espelho como ficou nesta manhã (o que lhe custou o atraso de 43 metros ), nunca havia saído do ritmo. Agora era tarde, os monitores da Administração o haviam notado, notado a sua quebra no padrão, os centenas de monitores espalhados por todos os prédios o denunciaram.
”ELES vão me ajudar”, pensou. Era o que foi ensinado nas escolas: sabia que ELES cuidariam de todos.
Foi deixado sentado em uma sala com duas portas. O mais baixo disse: "Aguarde um pouco, por favor" e depois saiu da sala seguido de seu parceiro. MAX ficou sentado, em silêncio, olhou ao seu redor e viu que a sala tinha paredes lisas, pintadas de um azul bem fraco, a iluminação vinha da parede, como se esta fosse um pouco translúcida. Além da cadeira que sentava, havia uma outra e um criado mudo ao lado desta. Não sabe ao certo quanto tempo ficou sentado esperando. Deve ter ficado por umas 3 horas, pois estava começando a sentir fome (como previsto).
Um homem gordo e com um ar amistoso, também vestido de preto, entrou pela outra porta e observou MAX por alguns segundos, trazia com ele um cinzeiro na mão e um cigarro na boca.
_ Posso fumar? Perguntou o homem que enquanto falava, sentava na outra cadeira e colocava o cinzeiro no criado mudo. MAX respondeu com um tímido baixar de cabeça, ele não encarava o homem gordo, de suas mãos pingavam suor frio. Nunca havia visto um homem gordo na vida.
_ Posso fumar? Perguntou o homem que enquanto falava, sentava na outra cadeira e colocava o cinzeiro no criado mudo. MAX respondeu com um tímido baixar de cabeça, ele não encarava o homem gordo, de suas mãos pingavam suor frio. Nunca havia visto um homem gordo na vida.
_ Está frio aqui? Posso mandar abaixar a temperatura da sala se quiser. Perguntou o homem.
MAX não respondeu, estava esperando o homem começar a falar.
_ Você sabe porque está aqui?
_ Eu sei porque estou aqui...
_ E sabe porque VOCÊ pediu para ser trazido aqui?
MAX ficou imóvel. Ele sabia o motivo de estar naquela sala conversando com aquele homem, só não sabia o PORQUÊ.
_Deve estar se perguntando o que fez para sair do ritmo. Porque você está se sentindo diferente nessas últimas horas. Você sabe que nosso mundo é sustentado por centenas de milhares de fios tênues e que se um arrebentar, todos os outros irão se arrebentar depois? Você sabe qual a importância de cada cidadão para a nossa Cidade? Você sabe que precisa de ajuda? Você sabe que colocou todo a nossa Cidade em perigo?
Agora MAX-1601 não mais via o homem gordo, somente um clarão na sua mente, não conseguia mais sentir o seu redor, estava se sentindo vazio por dentro, só conseguiu gritar:
_Eu não sei! Eu não sei o motivo! Eu não sei... Eu sei! Eu... Eu não quero mais... Engoliu em seco e ficou mudo.
_Eu não sei! Eu não sei o motivo! Eu não sei... Eu sei! Eu... Eu não quero mais... Engoliu em seco e ficou mudo.
O homem gordo apenas observou o pobre cidadão, apagou o cigarro no cinzeiro e disse:
_NÓS cuidaremos de você . E dito isso, saiu pela porta em que entrou.
_NÓS cuidaremos de você . E dito isso, saiu pela porta em que entrou.
MAX ficou com a cabeça entre as mãos, com olhos apertados. Nos primeiros instantes sua mente não conseguia pensar em nada, tudo estava embaralhado. Abriu os olhos e ficou olhando fixamente para o criado-mudo. Porque ele quebrara o seu ritmo? MAX-1601 tinha 37 anos e nunca saíra do padrão, desde os trabalhos na escola, até ontem. Parecia que não estava feliz com o seu trabalho, sua vida, queria algo de novo, queria escolher...
Absurdo! "Todos eram felizes! Todos consumiam, trabalhavam, todos davam a sua contribuição para a manutenção da Cidade! A Cidade era o cidadão! Se o cidadão não está feliz, a Cidade também não está!"
MAX se levantou, caminhou pela a sala, esfregou os olhos. Lembrou-se de uma vizinha (não lembrava seu nome) que nunca mais vira depois que esta falhou em seu trabalho na Sessão de Energia. Na época ELES disseram a todos que a mulher nunca existira. Todos acreditaram. Ela nunca existira a partir daquele momento (ele também pensava assim, claro, por que não?), mas agora, anos depois, sabia muito bem o que aconteceu com ela. ELES mentiram! Sempre mentiram! De repente teve medo.
_ Será que eu também nunca existirei? Será que eu serei apagado? Será que farão o mesmo comigo? Sempre viveu com medo, mas agora era diferente, ele sabia o que temer! Sabia quem eram ELES. Tinha mais medo agora do que antes. MAX se aproximou da porta por onde o homem gordo saiu, testou, estava aberta. Um corredor branco sem fim era a única coisa que via. Pensou por alguns instantes e saiu correndo pelo corredor!
Atenção. Cidadão MAX-1601 em área não autorizada se dirigindo em alta velocidade. Atitude fora do previsto. Atenção. Equipes de segurança, cidadão em área não autorizada. Situação: Vermelho.
MAX corria pelo interminável corredor, passara por dezenas de portas (sem qualquer identificação). O corredor ficara com uma iluminação vermelha que também saia pela parede, percebeu um pequeno grupo de homens de preto correndo atrás dele. ELES estavam ganhado terreno. Entrou em uma porta, bloqueou sua passagem com uma cadeira apoiada na maçaneta. Parou para respirar, os homens estavam tentando forçar a porta. MAX olhou onde estava, estava em uma sala com centenas de monitores e várias pessoas sentadas em frente aos monitores e não notaram a sua presença (impossível!). Notou uma mulher que ele achou familiar e MAX se aproximou. A mulher parecia em transe, ela olhava fixamente para os monitores e dizia com uma voz sem emoção:
Atenção. Cidadão MAX-1601 em área não autorizada, equipe de segurança. Encaminhar para a Sessão de Monitoramento. Atenção. Cidadão MAX-1601em área não autorizada. Situação: vermelho
MAX ficou assombrado. Todos pareciam zumbis! ELES estavam quase arrombando a porta, enquanto as dezenas de pessoas apenas acompanhavam seus monitores e relatando com suas mensagens, como se não estivessem ouvindo ou vendo nada mais que seus microfones e monitores. Um barulho de algo quebrando veio de trás dele, não tinha saída, teria que lutar. Cinco homens entraram na sala com aparelhos reluzentes nas mãos, enquanto MAX golpeava o primeiro com uma cadeira na cabeça, conseguiu dar um chute na boca do estômago de outro, mas quando ao tentar de defender do terceiro homem, sentiu uma choque na espinha, e depois no braço esquerdo, MAX tentou ficar de pé, mas caiu em seguida completamente imóvel. Sentia seu corpo dormente. Estava preso.
Foi levado consciente para uma outra sala, os únicos músculos estriados de seu corpo que ainda se movimentavam, eram os dos globos oculares. Notou que estava em uma cama, em uma sala muito clara, e vários homens de azul em sua volta, todos de máscara. O homem gordo estava na sala e olhava para ele com um olhar de tristeza. Sabia muito bem o que iria ser feito. Apesar de tudo, ele nunca pensara antes com tanta clareza. Sabia exatamente o que acontecera com aquelas pessoas na Sessão de Monitoramento. Sabia quem era aquela mulher. Ele agora sabia que em algumas horas, o cidadão MAX-1601 iria desaparecer para sempre.
Mas não estava mais com medo. Sabia que logo ele não seria mais um "zumbi consciente". O seu corpo seria transformado numa espécie de autômato, mas ao menos sua mente estaria livre. Sentia vontade de chorar, de rir, mas não podia. Lamentou por alguns instantes o fato de nunca ter vivido sua vida, pensou que nos últimos minutos, vivera mais do que qualquer pessoa. “Logo estarei livre!”
Sentiu um formigamento na mão esquerda, uns dos homens de azul lhe aplicara algo com uma seringa. Minutos depois, MAX-1601 dormiu para nunca mais acordar.
Na manhã seguinte, nos auto-falantes, uma voz masculina era ouvida pela primeira vez:
Monitoramento da Via de Acesso. Fluxo normal. Números de cidadãos por minuto dentro da média, sem alterações de posições. Situação: azul.
Márcio Delgado
Conto originalmente escrito em 1997 e revisto em 2011.
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